Atividades podem estimular sinapses e desenvolver potencial infantil

Projeto aplicará atividades em crianças de Boa Vista, Roraima, para verificar resultados e viabilidade de estender ação

Grupo de pesquisadores pediátricos que estuda o desenvolvimento infantil e como este influencia a vida adulta analisa como intervir na construção das sinapses da criança – Foto: Wikipedia Commons

A arquitetura cerebral de uma pessoa é a base para todas as aptidões que ela pode desenvolver. Se bem formulada desde os primeiros estágios da vida, um ser humano é capaz de exercer todas as suas potencialidades durante a vida. Este é o objetivo de uma nova política pública desenvolvida pelo Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP): garantir que as crianças brasileiras tenham condições de atingir todo o seu potencial. A aplicação planejada de atividades estimulantes entre pais ou cuidadores e criança está sendo testada experimentalmente em Boa Vista (RR). A meta é avaliar os resultados para saber se é viável a implementação da ação em escala – e qual a melhor forma de fazer isso.

A construção cerebral é um processo orgânico e estímulo-dependente, ou seja, a criança precisa ser estimulada por condições ou pessoas externas para que o seu organismo desenvolva cada vez mais a arquitetura de sinapses cerebrais. Esse mecanismo começa durante a gestação e ocorre de forma intensa na primeira infância, entre o nascimento até os três anos de vida, como explica a professora e pediatra Sandra Grisi. Quanto mais desenvolvida a edificação mental de uma pessoa, maiores serão as suas potencialidades e as chances de atingi-las, tanto físicas quanto mentais, tornando-se mais preparada para entender o mundo e se organizar no mesmo.

Pensando nisso, um grupo de pesquisadores pediátricos, do qual a professora Sandra participa, que estuda o desenvolvimento infantil e como este influencia a vida adulta das pessoas, começou a analisar a possibilidade de intervir nessa construção das sinapses infantis.

Tudo começou em 2012, quando o grupo estudava as relações ambientais e familiares no desenvolvimento da criança, tanto somático quanto psíquico. “Num determinado momento pensamos ‘bom, isso é pouco’”, conta a professora Sandra. “Sabemos pelas neurociências que nós temos que estimular o desenvolvimento, então buscamos qual é o melhor jeito de fazer isso e de uma forma democrática.” Os instrumentos utilizados para estimular os bebês são brinquedos que podem ser construídos com materiais simples, como chocalhos, brinquedos de encaixe de formas, entre outros. 

Após a pesquisa sobre vários tipos de estímulos infantis na literatura médica, o grupo escolheu o modelo elaborado por Susan Walker, professora na University of the West Side, na Jamaica. Este modelo se baseia no desenvolvimento infantil por meio de atividades entre cuidador e criança. Dessa forma, as atividades de estímulo são incorporadas ao cotidiano do bebê, sendo constantemente estimulado por suas mães ou cuidadores. Os pesquisadores acreditam que essa medida seria irradiante, pois “na medida em que capacitamos esse cuidador ou essa mãe a estimular o desenvolvimento de uma criança, consequentemente estamos capacitando essa mãe ou cuidador a promover o desenvolvimento de toda a sua prole”, explica a professora.

Além disso, o método de Susan Walker já possuía uma aplicação concreta e um acompanhamento a longo prazo dos efeitos da aplicação. Dessa forma, os pesquisadores sabiam da eficiência do procedimento. Após fazer uma adaptação dos brinquedos usados nas atividades estimulantes e uma revisão do currículo da programação de estímulo, o departamento deu início à avaliação de impacto do projeto .

  Foto: Divulgação / Departamento de Pediatria da FMUSP
Avaliação de impacto

Com apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que financia projetos em educação infantil, e o financiamento recebido pela vitória do Gand Challenge Canada (um edital internacional promovido pelo governo canadense para obter recursos voltados para pesquisas), em 2017 iniciou-se a fase de avaliação de impacto, para verificar se a intervenção teria efeito e qual o modo mais eficiente para ela. O estudo foi realizado em São Paulo, com crianças da zona oeste da cidade.

Nesse processo foram avaliadas quatro tipos de situações. Na primeira, o ensino da intervenção às mães e cuidadores seria realizado por agentes comunitários de saúde, que já realizam visitas em domicílios para acompanhar a saúde de pessoas com doenças crônicas. Neste caso, cada agente atende uma região, então as visitas à casa de crianças de até três anos foram incorporadas no cronograma desses agentes. Na segunda situação, as visitas foram comandadas por agentes de desenvolvimento infantil, que eram pessoas da comunidade local encarregadas de aplicar apenas a intervenção. O terceiro caso era a avaliação de crianças que frequentavam creches sem a intervenção e o último caso era composto de crianças que não recebiam a intervenção e não estavam matriculadas em creches.

Após a aplicação do programa, os dados mostram que as crianças do primeiro grupo receberam menos de 20% da intervenção, devido à rotina sobrecarregada dos agentes comunitários. Em contrapartida, as casas submetidas à intervenção com agentes de desenvolvimentos receberam em torno de 80% da intervenção. Esse dado é interessante quando essas crianças são submetidas a testes e avaliações do desenvolvimento. As crianças do segundo grupo obtiveram desempenho muito superior ao dos outros três, chegando a ter uma pontuação duas vezes maior sobre o primeiro grupo. “O modo de intervenção pode mudar completamente o resultado”, comentou a professora.
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Avaliação em escala

A ação em Roraima será realizada com agentes de desenvolvimento infantil, por ter se mostrado a forma mais eficiente. Serão pessoas da comunidade local, treinadas pela equipe da FMUSP para ensinar as mães ou cuidadores a realizar a intervenção. Soma-se a isso a iniciativa de passar essas instruções de maneira coletiva, ou seja, a intervenção poderá ser ensinada para as mães em grupos ou em domicílio. Estima-se que em 2018 haverá cerca de nove mil nascimentos em Boa Vista e ainda neste ano um terço da cidade irá receber o procedimento. No ano seguinte, outro terço começará a receber a intervenção, até que em 2020 todas as crianças nascidas em Boa Vista estejam incorporadas ao programa, com apoio da prefeitura local.

A capital roraimense foi escolhida por uma série de fatores, mas a professora destaca os baixos níveis de desenvolvimento social e de renda. Entretanto, a cidade já oferecia um sistema público de saúde consolidado, o que permite aos pesquisadores analisar a interação da inserção da intervenção na política pública. Após o fim da experiência em Roraima, os dados dirão se a intervenção é viável em larga escala e a melhor forma de fazê-la, para assim poder levar os resultados ao poder público.

JORNAL USP