Descoberto componente bioquímico responsável por queda da pressão arterial na sepse

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Imagem: Valorize a Vida

Maria Fernanda Ziegler  |  Agência FAPESP – Estudo realizado por um grupo internacional de pesquisadores provocou uma reviravolta no entendimento sobre doenças inflamatórias potencialmente fatais como, por exemplo, a sepse. O trabalho apontou um agente bioquímico possivelmente envolvido na rápida diminuição da pressão arterial que ocorre no estágio avançado da doença – e costuma causar a morte do paciente. A descoberta pode abrir caminho para novas abordagens terapêuticas.

Principal causa de morte nas unidades de terapia intensiva (UTIs) brasileiras – com taxa de letalidade em torno de 50% – a sepse é decorrência de uma resposta desregulada do sistema imune a um agente infeccioso. Por motivos ainda não muito claros, as células de defesa passam a atacar não apenas o patógeno, mas também o próprio organismo do paciente. As respostas bioquímicas à inflamação alteram a constrição dos vasos sanguíneos, levando à rápida diminuição da pressão arterial, falência dos órgãos e morte.
Por quase 10 anos, acreditou-se que a quinurenina – produto metabólico do aminoácido triptofano – seria a possível responsável pela dilatação dos vasos sanguíneos e consequente queda da pressão arterial durante a sepse. O composto seria o desencadeador de reações bioquímicas que pioravam a inflamação sistêmica do paciente, levando-o a óbito.

No entanto, o estudo que contou com a participação de pesquisadores do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP – demostrou que há um novo “suspeito” indireto para o problema: o oxigênio singlete, uma espécie eletronicamente excitada da molécula de oxigênio (1O2 , molécula altamente reativa, com dois elétrons emparelhados no mesmo orbital ou em orbitais diferentes).

De acordo com os dados publicados na Nature, o oxigênio singlete estaria envolvido na formação de uma molécula sinalizadora que regula o tônus vascular e a pressão sanguínea durante a inflamação característica da sepse.

Com base em experimentos que envolveram técnicas de cromatografia líquida acoplada a espectrometria de massas e ressonância magnética nuclear, o grupo de pesquisadores mostrou a formação de um vasodilatador diferente do anteriormente proposto. O composto chamado de cis-WOOH é formado pela enzima indoleamina 2,3-dioxigenase 1 (IDO1) a partir de uma reação que envolve o triptofano – aminoácido essencial encontrado em proteínas – e o oxigênio singlete. Isso tudo em uma situação com altas concentrações de peróxido de hidrogênio (H2O2), substância oxidante popularmente conhecida como água oxigenada.

O estudo, liderado pelo pesquisador Roland Stocker, do Victor Chang Cardiac Research Institute, na Austrália, reuniu pesquisadores da Austrália, Inglaterra, Brasil, China, Alemanha e Japão.

“Verificamos que, durante processos inflamatórios fatais, como a sepse, ocorre um aumento muito grande de água oxigenada nas paredes dos vasos sanguíneos. A substância chega a concentrações muito altas. Além disso, o triptofano é ‘bombeado’ para essas células da parede arterial”, disse Paolo di Mascio, pesquisador do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), integrante do CEPID Redoxoma e um dos autores do artigo. Fernanda Prado, do Redoxoma, também participou do estudo.

O grupo observou a expressão da enzima IDO1 em grande quantidade dentro das células. “Esse coquetel de água oxigenada, IDO1 e triptofano faz com que a IDO1 adquira um ganho de função. A enzima passa a processar o triptofano de uma maneira diferente, formando o hidroperóxido cis-WOOH. Nesse sentido, tanto a atividade de IDO1 quanto a formação do oxigênio singlete são necessárias para o triptofano provocar a vasodilatação”, disse Di Mascio.

No estudo realizado em camundongos, os pesquisadores constataram que o cis-WOOH age como uma molécula de sinalização, induzindo o relaxamento de artérias de diferentes espécies e diminuindo a pressão sanguínea.

De acordo com os pesquisadores, os achados sobre o componente bioquímico responsável pela queda da pressão arterial na sepse e sobre as novas funções biológicas para a enzima IDO1 podem servir como ponto de partida para a descoberta de um repertório refinado de vias de sinalização redox – quando espécies reativas de oxigênio (caso do oxigênio singlete) agem como mensageiros biológicos.

“A IDO1 pode se tornar um alvo terapêutico em diversas patologias como, por exemplo, a sepse. Além disso, os dados da pesquisa indicam a possibilidade de que o oxigênio singlete e a IDO1 possam estar envolvidos na modulação da resposta imune contra tumores, favorecendo a evasão tumoral. Inibidores de IDO1, portanto, podem abrir caminho para o desenvolvimento de fármacos”, escreveram os pesquisadores.

Esta foi a primeira vez que se mostrou o oxigênio singlete exercendo um papel sinalizador fisiopatológico em mamíferos. A molécula é mais conhecida por seu envolvimento na fisiologia de bactérias e fungos e na fotossíntese de plantas.

CSI da sepse

No trabalho anterior, também liderado por Roland Stocker e realizado por parte do mesmo grupo de pesquisadores, relatou-se que a quinurenina dilata os vasos sanguíneos fazendo com que a molécula de sinalização guanosina monofosfato cíclica (GMPc) ative a proteína quinase G1α (PKG1α).

Porém, no estudo recente, foi constatado que a vasodilatação mediada pelo cis-WOOH precisa de muito menos GMPc do que o relaxamento dos vasos sanguíneos mediado pela quinurenina, mas ainda requer a ativação da PKG1α.

Diferentemente do que havia sido publicado no estudo anterior, os pesquisadores provaram que a quinurenina devidamente purificada não causa a vasodilatação na sepse. Essa foi a primeira vez que se demonstrou em mamíferos o papel sinalizador fisiopatológico do oxigênio singlete, envolvido na fisiologia de plantas, bactérias e fungos.

De acordo com editorial publicado na seção News and Views da Nature, a busca pelo verdadeiro causador da resposta bioquímica na sepse ganhou ares de investigação policial.

“Um dos autores deste nosso artigo tinha publicado um trabalho também na Nature, há nove anos, em que a quinurenina era considerada como verdadeira culpada do processo de vasodilatação. No entanto, depois da publicação dos dados, outros pesquisadores tentaram reproduzir o estudo sem sucesso. Isso deixou os autores muito preocupados, afinal ciência é reprodutibilidade”, disse Di Mascio à Agência FAPESP.

O pesquisador afirma que para descobrir o verdadeiro “agente” da vasodilatação na sepse foi montada uma verdadeira operação logística e de coordenação de pesquisa nos laboratórios em seis países diferentes.

“Foi uma operação e tanto coordenar esse estudo entre tantos laboratórios. Nossas amostras chegavam em nitrogênio líquido da Austrália. Por fim, concluímos que no trabalho publicado há nove anos, muito provavelmente, os pesquisadores tinham comprado uma quinurenina contaminada com outro produto, o cis-WOOH”, disse Di Mascio.

O cientista explica que o composto gerado pela reação do triptofano com o oxigênio singlete já tinha sido identificado, caracterizado e publicado em 2008 pela pesquisadora Graziella Ronsein, professora do Departamento de Bioquímica do IQ-USP.

“O importante é que o estudo mais recente pode desencadear novos tratamentos, novas abordagens. A morte por sepse é muito alta no mundo inteiro. Acredito que vamos ter desdobramentos interessantes e positivos para a sociedade a partir desse estudo”, disse.


O artigo Singlet molecular oxygen regulates vascular tone and blood pressure in inflammation (doi: 10.1038/s41586-019-0947-3), de Christopher P. Stanley, Ghassan J. Maghzal, Anita Ayer, Jihan Talib, Andrew M. Giltrap, Sudhir Shengule, Kathryn Wolhuter, Yutang Wang, Preet Chadha, Cacang Suarna, Oleksandra Prysyazhna, Jenna Scotcher, Louise L. Dunn, Fernanda M. Prado, Nghi Nguyen, Jephthah O. Odiba, Jonathan B. Baell, Johannes-Peter Stasch, Yorihiro Yamamoto, Paolo Di Mascio, Philip Eaton, Richard J. Payne e Roland Stocker, pode ser lido na Nature em www.nature.com/articles/s41586-019-0947-3
 


Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Edição local: Willen Benigno de Oliveira Moura