Alterações no metabolismo de gordura estão ligadas à progressão da Esclerose Lateral Amiotrófica

Pesquisadores do Instituto de Química da USP são pioneiros na análise do conjunto de lipídios do sistema nervoso, conhecimento que pode ajudar a desenvolver novos tratamentos

Arte: Jornal da USP

Um estudo observacional, realizado por pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da USP e do Cepid Redoxoma, trouxe achados importantes relacionados à Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença neurodegenerativa que afeta os movimentos e a respiração. O grupo investigou todos os lipídios presentes em tecidos do sistema nervoso central de ratos portadores de ELA e mostrou que há um acúmulo de ésteres de colesterol e uma diminuição dos níveis de cardiolipina na medula espinhal desses animais. Os resultados estão no artigo Alterations in lipid metabolism os spinal cord linked to amyotriophic lateral sclerosis, publicado no periódico Scientific Reports em 12 de agosto.

Os lipídios – ou moléculas de gordura – são encontrados em grande quantidade e variedade no SNC e desempenham funções importantes: controlam a fluidez das membranas celulares e formam uma espécie de capa chamada bainha de mielina, que envolve os axônios nos neurônios e facilita a transmissão de impulsos elétricos. Alterações no metabolismo lipídico em neurônios estão associadas ao envelhecimento e ao aparecimento de doenças neurodegenerativas. “Essas alterações poderiam ser consequência do estresse oxidativo e do aumento de radicais livres”, explica Adriano Britto, primeiro autor do estudo. “O nosso objetivo foi entender a relevância dessas moléculas na progressão da ELA.” O estresse oxidativo é o desequilíbrio entre a produção de radicais livres, prejudiciais às células, e de antioxidantes, que as protegem destes danos.

Estudos anteriores já haviam descrito a presença e o aumento desses compostos no sistema nervoso. O que o grupo fez de novo foi, por meio de uma técnica chamada espectrometria de massa, caracterizar e quantificar todas as moléculas de gordura no cérebro, dando um passo adiante na busca por novos tratamentos.
Experimentos e resultados

Os cientistas usaram um modelo animal que apresenta os sintomas da doença somente na fase adulta. Os ratos SOD1-G93A expressam uma quantidade elevada da proteína superóxido dismutase, que tem um papel antioxidante e combate a formação de radicais livres. “Expressão” é o termo usado para dizer que um gene está ativo, codificando proteína. “A SOD-1, quando mutada, deixa de combater o estresse oxidativo, se agrega e produz um aglomerado que causa danos às células”, enfatiza Adriano Britto. Para efeitos de comparação, animais selvagens (wild type), isto é, sem a mutação, foram utilizados como controle.

Tecidos do córtex motor e da medula espinhal – regiões mais afetadas nesse modelo – dos ratos foram retirados para análise em duas fases: aos 70 dias de vida, quando ainda não demonstram sintomas, e aos 120 dias de vida, quando a doença já está instalada. “Nesse estágio, os animais apresentam todos os sintomas da doença e várias paralisias”, relata Sayuri Miyamoto, professora associada do IQ e coordenadora do estudo.

Os resultados mais interessantes foram observados na medula espinhal. “Entre as 406 espécies de lipídios quantificados, encontramos um aumento significativo dos ésteres de colesterol, também conhecidos como lipídios de armazenamento, e uma redução dos níveis de cardiolipina”, diz Marcos Yukio Yoshinaga, biólogo responsável pela análise lipidômica no estudo. “Encontramos ésteres de colesterol na circulação sanguínea, em outros órgãos, mas no cérebro não é comum a presença desses compostos.”

Ésteres de colesterol estão presentes no plasma humano (líquido amarelado que compõe o sangue) e no fígado, por exemplo, e uma de suas funções é o transporte de colesterol para o corpo. Uma parte do colesterol humano existe esterificado, ou seja, ligado a um ácido graxo. No entanto, o estresse oxidativo e a disfunção mitocondrial são fatores que acabam induzindo os neurônios a produzir mais colesterol. Mecanismos similares já foram descritos na doença de Alzheimer, porém os que estão envolvidos nesse processo ainda não estão claros. “Nossos dados mostram não só o aumento desses ésteres de colesterol, como também a diminuição de um lipídio da mitocôndria, chamado cardiolipina”, complementa Sayuri.

A cardiolipina é encontrada na membrana interna da mitocôndria e desempenha um papel importante na estrutura e na função dessas organelas. Em condições normais, o astrócito, uma das células mais abundantes no cérebro, capta glucose da circulação sanguínea, converte em lactato e o transfere para o neurônio. O lactato é oxidado, vai para a mitocôndria e gera o ATP, que é a energia necessária para o neurônio funcionar adequadamente. “Essa diminuição dos níveis de cardiolipina nos diz que há alguma disfunção na mitocôndria”, diz Sayuri. “Quando há um problema na organela, o mesmo oxigênio – que seria utilizado para produzir o ATP – recebe um elétron, vira um radical livre e ataca outras biomoléculas.” Níveis aumentados desses radicais livres, também chamados de espécies reativas de oxigênio (ROS, em inglês), promovem a síntese aumentada de lipídios nos neurônios, os quais posteriormente se acumulam na forma de gotículas lipídicas em células da glia.
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Adaptado de Scientific Reports

No córtex motor, foram identificadas e quantificadas 285 espécies de lipídios, classificadas em 26 subclasses. Nos ratos mais velhos, os cientistas observaram um aumento de esfingolipídios (componentes da bainha de mielina), provavelmente associado à idade dos animais.
Causas desconhecidas

A Esclerose Lateral Amiotrófica é uma das principais doenças neurodegenerativas ao lado das doenças de Parkinson e Alzheimer. Suas causas ainda são desconhecidas, mas estudos apontam que 10% delas estão associadas a fatores genéticos. Segundo dados do Ministério da Saúde, a patologia acomete 2.500 brasileiros por ano.

A doença afeta os neurônios motores do cérebro e da medula espinhal. A curto e médio prazo, o paciente sente um enfraquecimento dos músculos, contrações involuntárias e torna-se incapaz de mover os braços, as pernas e o corpo. Geralmente, as pessoas com ELA vivem de três a cinco anos anos após o início dos sintomas.

“A força desse trabalho está em fornecer informações novas sobre análise lipidômica”, explica Marimélia Porcionatto, professora associada do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp. “Entender os mecanismos envolvidos na formação desses lipídios abre perspectivas para desenvolvimento de fármacos que poderiam salvar e impedir a morte dos neurônios”, completa Adriano Britto.