Plataforma foi testada com 13 adolescentes com deficiência auditiva, que usavam um aparelho de amplificação sonora individual – Foto: USP Imagens
Na sala de aula, um adolescente se esforça para prestar atenção no que o professor está falando. O ambiente a sua volta não contribui para a realização da tarefa: os sons das vozes dos colegas se misturam a diversos outros ruídos como o barulho dos carros que passam na rua, o canto de pássaros, os passos de um colega que se levanta. Em um ambiente ruidoso, manter o foco para escutar o professor é um desafio para qualquer estudante ouvinte, imagine então a dificuldade enfrentada por um aluno com deficiência auditiva.
Com o objetivo de facilitar a mensuração desse esforço auditivo, pesquisadores da USP criaram uma plataforma digital e gratuita que facilita a realização de testes de dupla tarefa. Adolescentes com e sem deficiência auditiva participaram dos primeiros experimentos usando a ferramenta e os resultados indicam que a plataforma poderá ser uma importante aliada dos fonoaudiólogos em diversos contextos.Exemplo de uma das telas da plataforma digital criada pelos pesquisadores – Imagem: Divulgação / FOB
O projeto é resultado da união de esforços de duas pesquisadoras da área de fonoaudiologia, vinculadas à Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, e de mais dois pesquisadores da área de computação, ligados ao Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. A soma dos conhecimentos das duas áreas propiciou quantificar quanto os adolescentes se esforçam para compreender uma mensagem quando estão em uma situação adversa, enfrentando dificuldades para ouvir.
“No depoimento de um dos estudantes sobre o ambiente da sua sala de aula, que considera barulhenta, ele diz que não consegue prestar atenção na fala do professor. Então, desiste de acompanhar a aula e começa a conversar com os amigos. Essa atitude pode trazer impactos negativos para o processo de aprendizagem”, explica Aline Duarte da Cruz, que defendeu recentemente seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Fonoaudiologia da FOB. Dependendo do esforço auditivo que é realizado, o estudante pode apresentar fadiga, caracterizada como um sentimento de cansaço, exaustão, dificuldade de concentração, aumento da distração, alteração de humor, diminuição da energia e da eficiência mental, podendo levar ao estresse. Daí a relevância de construir instrumentos apropriados para mensurar o esforço auditivo.
Foi a orientadora do trabalho de Aline, a professora Regina Tangerino de Souza, que tomou a iniciativa de buscar uma parceria na área de computação para lidar com um dos desafios encontrados pelas pesquisadoras: elas precisavam medir o esforço auditivo dos adolescentes de forma fácil e atraente, além de, ao mesmo tempo, registrar os dados obtidos de maneira rápida e confiável. Quando o e-mail de Regina chegou ao professor Seiji Isotani, do ICMC, ele logo pensou no doutorando Wilmax Cruz, que, durante o mestrado, havia elaborado um software para apoiar cuidadores de idosos, o Day2Day. A experiência anterior de Wilmax na área de tecnologia aplicada à saúde foi fundamental para que os dois pesquisadores do ICMC atendessem ao chamado das fonoaudiólogas.
“Todas as áreas do conhecimento têm buscado essa abrangência interdisciplinar. Na computação, em particular, temos essa visão de propiciar o uso de tecnologias por outras áreas, já que, atualmente, a computação permeia todos os campos”, destaca o professor Seiji Isotani.O projeto também contou com a colaboração do professor Jean-Pierre Gagne, do Institut Universitaire de Gériatrie de Montréal, que foi co-orientador de Aline no doutorado – Fotos: Divulgação / FOB
Como funciona
Aline explica que, para medir o esforço auditivo, é comum empregar um teste em que o participante precisa realizar duas tarefas simultaneamente: enquanto escuta uma fala em um ambiente com ruído (tarefa primária), a pessoa precisa, ao mesmo tempo, realizar outra tarefa como, por exemplo, uma atividade de memorização (tarefa secundária). Em suas buscas, Aline não encontrou uma padronização nessas atividades secundárias: enquanto alguns pesquisadores pediam aos participantes para memorizarem uma sequência de números, outros requisitavam que as pessoas se lembrassem dos desenhos de um baralho (naipes) ou de uma sequência de cores.
Mas por que usar duas tarefas nesse caso? A fonoaudióloga explica que a dupla tarefa requer do participante a execução de várias operações mentais simultâneas, o que acontece frequentemente durante a aprendizagem, quando, por exemplo, os alunos precisam acompanhar atentamente a fala contínua do professor enquanto fazem suas anotações: “Na dupla tarefa, o participante deve focar sua atenção na tarefa principal, que é o reconhecimento da fala. Qualquer outra tarefa é secundária”.
Imagine, agora, o trabalho que os fonoaudiólogos têm para medir, manualmente, o esforço auditivo de um paciente na realização dessa dupla tarefa. Para ter validade científica, um teste assim precisa ser realizado por mais de um especialista, para garantir que não existam erros no registro dos dados no papel. “Então, identificamos que havia uma lacuna: se usássemos a tecnologia para nos ajudar, poderíamos facilitar o registro dos dados e também tornar o teste mais agradável para os adolescentes, nosso público-alvo”, conta Aline.
Foi assim que nasceu a Paleta, uma plataforma digital para auxiliar na execução de testes de dupla tarefa. O adolescente escuta várias sentenças em meio a ruídos enquanto vê, diante da tela de um computador, tablet ou do celular, uma sequência de cores piscando que precisa ser memorizada. A seguir, o adolescente deve repetir as sentenças que escutou, bem como a sequência das cores que viu. A plataforma registra automaticamente o que foi lembrado pelo participante, bem como os erros, os acertos e o tempo que cada adolescente levou para recuperar a informação visual. Com esses dados coletados, calcula-se o esforço auditivo.
O interessante é que foi um brinquedo popular da década de 1980, guardado na memória de Wilmax, que serviu de inspiração para a criação da Paleta. “Você se lembra daquele jogo chamado Genius, em que os botões coloridos emitiam sons, se iluminavam em sequência e a gente tinha que repetir? Então, eu pensei em fazer isso, só que de forma virtual”, revela o doutorando.Brinquedo Genius inspirou Wilmax – Foto: Divulgação / FOB
Os primeiros testes
A Paleta foi testada com 18 adolescentes com audição normal e 13 adolescentes com deficiência auditiva de grau moderado e severo, com média de idade de 14 anos. Esses 13 adolescentes usavam um aparelho de amplificação sonora individual (AASI). Mesmo com a utilização do aparelho, quem tem deficiência auditiva costuma ter dificuldade para entender a fala em ambientes com ruído.
Uma das soluções encontradas para reduzir esse problema é acoplar ao AASI uma tecnologia assistiva: o sistema de frequência modulada (sistema FM). O dispositivo é composto de um transmissor e um receptor. O transmissor é responsável por captar a fonte sonora, por exemplo, a voz do professor, por meio de um microfone. O sinal é enviado diretamente para o receptor, uma peça que é acoplada ao AASI do estudante. Assim, a ênfase recai exclusivamente na voz do professor. Desde 2013, o Sistema Único de Saúde fornece o sistema FM para crianças e adolescentes na faixa etária entre cinco e 17 anos.
Com o objetivo de verificar se há uma redução no esforço auditivo dos adolescentes com deficiência auditiva ao utilizarem o sistema FM, Aline realizou testes com a Paleta em adolescentes que usavam o AASI, nas situações sem e com o sistema FM acoplado. “O uso do sistema FM foi efetivo para reduzir o esforço auditivo quando comparado com os resultados apenas com o uso do AASI. O esforço foi menor até mesmo quando comparado ao dos adolescentes que tinham audição normal”, ressalta Aline nas conclusões da tese de doutorado Esforço auditivo e fadiga em adolescentes com deficiência auditiva – uso do sistema FM.
Em relação ao impacto do ruído na aprendizagem, Aline diz que a queixa dos adolescentes com deficiência auditiva diminui significativamente com o uso do sistema FM. “Eles apresentam melhor desempenho até que seus pares ouvintes”, enfatiza a pesquisadora. Não é à toa que a maioria dos adolescentes usuários do sistema FM encontra-se satisfeita e faz uso efetivo de seus dispositivos em sala de aula.
Aline (à direita) e sua orientadora, a professora Regina, durante a defesa da tese de doutorado, que aconteceu no dia 15 de maio na FOB/USP – Foto: Arquivo pessoal
Colorida e em vários idiomas
“Quando começamos o projeto, não tínhamos ideia da importância que a plataforma poderia ter. Foi um processo intenso de construção conjunta”, diz Wilmax. A união de esforços deu tão certo que a Paleta estará disponível, em breve, em mais três idiomas – inglês, francês e espanhol – além do português. Gratuita e aberta, a plataforma pode ser personalizada. Ou seja, os fonoaudiólogos podem selecionar a quantidade de apresentações e a sequência de cores a serem empregadas na tarefa secundária que querem utilizar, de acordo com a tarefa primária selecionada.
Acessível por meio do endereço eletrônico www.paleta.fob.usp.br, a Paleta pode ser utilizada via computador, tablet e celular, com suporte para sistema operacional IOS e Android. Aline destaca que cada vez mais profissionais de saúde têm aderido ao uso de aplicativos para auxiliar na consulta, diagnóstico e acompanhamento de pacientes. De fato, a Paleta mostra quanto o diálogo entre computação e saúde pode ser bem-sucedido, especialmente quando os especialistas das duas áreas do conhecimento sabem ouvir uns aos outros.Imagem mostra o ambiente de teste da Paleta – Ilustração: Divulgação / FOB
Denise Casatti / Assessoria de Comunicação do ICMC
JORNAL DA USP